Por Wesley Carvalho em Ensino e História
"O filme "Não gosto de meninos" é um pequeno documentário que reúne depoimentos de homossexuais sobre dificuldades de aceitação que enfrentaram. Trabalhei com ele em quatro turmas de oitavo ano. Segue abaixo os percalços e triunfos dessa experiência.
De vários lugares os alunos recebem a mensagem de que é importante o respeito às diferenças sexuais. Entretanto, poucos devem ter a dimensão de sofrimento e opressão por que passam os gays. O filme é importante nesse sentido da sensibilização. Creio que lidar com um homossexual assumido expressando a homossexualidade é uma experiência que vários de nossos alunos jamais terão e outros tantos talvez apenas no meio da adolescência. Daí a importância de uma atividade como esta no ensino fundamental.
Por conta da alta alergia ao tema, a turma precisa de uma preparação para assistir o vídeo. Em particular onde eu trabalho o campo podia estar minado já que uma rádio evangélica de oposição ao prefeito já tinha explorado com bastante repercussão um episódio envolvendo funk em uma festa da escola.
A primeira preocupação a se destacar é com as piadas e os risos durante a exibição. Já que o objetivo é gerar o respeito e a solidariedade, se os alunos não tiverem um clima de solenidade vai tudo por água abaixo. Inclusive, estive decidido a cancelar o filme caso a turma fosse jocosa. Tive então o cuidado de conversar à parte e de um modo bem pessoal com alguns alunos mais destacados nas piadas, no bullying e que têm maior poder de influência no espírito geral dos demais. Em uma certa turma, isso significou um tête-à-tête com 50%. Não disse a eles nada diferente do que está nesse parágrafo, e disse também que o espaço estaria aberto a manifestações assim que o vídeo terminasse. Todos foram compreensivos e no final, tudo correu bem. Houve uns risos que não puderam conter, mas eles nada tiveram de jocosos: eram puro estranhamento de criança frente a algo diferente.
A segunda preocupação que destaco é a religião, em especial os evangélicos, já que a maioria sente-se ferida diante da liberdade sexual alheia. Discutir a religião e a homossexualidade é algo em que a escola deve-se engajar mas isso é muito difícil e requer algumas condições que nem sempre estão presentes. Portanto, por questão didática de várias ordens, não abordei a homofobia de fundo religioso. Em vez disso, trouxe que independentemente das considerações religiosas que tivessem (“Deus não quer que ninguém seja gay”, etc.), devemos ter o cuidado de não trazer sofrimento ao outro. Nesta retórica que trabalhei, qualquer ideia privada anti-homossexualidade (“ser gay é errado, é incompreensível”; “Deus não quer que ninguém seja gay”, etc.) não deveria contrariar um sentimento genérico de tolerância (não humilhar, não bater, não odiar). É claro que, por um lado, a homofobia está muito além do “humilhar, bater e odiar” e por outro, o tema da tolerância pode ser trabalhado de forma conservadora. Mas devemos fazer escolhas didáticas sob o risco do fiasco.
Mas há também algo essencial: a mensagem anti-homofóbica é muito maior do que aquilo que coloquei explicitamente com palavras, através daquela retórica aparentemente tímida – as pessoas não se guiam apenas por sentidos precisos de palavras. Para citar apenas dois exemplos: a aula e o filme valorizam a liberdade sexual e fortalecem emocionalmente os alunos homossexuais, sem que haja colocação verbal nesse sentido. E quem o prova é justamente um articulado e inteligente aluno evangélico de 13 anos (a única manifestação religiosa sobre o filme que tive): “Com isso aí o Sr. tá passando duas coisas pra gente. A primeira é que a gente tem que respeitar os gays. Ok, eu concordo. Mas a segunda coisa é que ser gay é normal. Eu não acho normal. Deus criou homem e mulher…” Ele entendeu tudo!
Creio que esse cuidado que eu tive foi o responsável para que a discussão não se tornasse religiosa, o que talvez gerasse uma tragédia pedagógica. Até penso que alguns alunos se manifestaram por causa de sua religião, mas à exceção do citado, não o fizeram com termos religiosos.
A terceira preocupação foi para que a discussão não se tornasse questão pessoal de ninguém. No debate que tivemos, não propus nenhuma questão pessoal aos alunos. Não houve nenhum convite para que ninguém pensasse sua própria sexualidade nem a de nenhum outro aluno na sala. Isso foi um ponto de muita ênfase e ficou bem compreendido. “Estou dizendo que é bom ser homossexual? Que todo mundo deve se tornar homossexual? Não cheguem na casa de vocês e digam: “Mãe, o professor de História quer que todo mundo vire gay!””
Sobre as opiniões sobre o filme e o tema, primeiro destaco as positivas: duas ou três turmas tiveram grupos que aplaudiram ao final da exibição. Em uma delas, uma menina gritou “viva os gays”. Pude notar grupos ou indivíduos de muita solidariedade e com forte noção de que os gays sofrem uma opressão séria. Acredito, mesmo sem muita base objetiva, que sejam uns 20% do total de alunos. Há uns, a grande maioria, que colocaram “Respeito mas não aceito”. Eles são os que tem motivos religiosos, ou que entendem que a homossexualidade é um desvio porque o sujeito apanhava do pai ou foi criado pela avó (palavras deles). Há ainda uns poucos (3 ou 4) que tiveram aversão ao tema (mas não à aula ou ao professor) e se manifestaram com agressividade verbal. Um conhecimento melhor sobre os alunos não é possível já que muitos não se manifestam ou talvez manifestem algo diferente do que pensam ou, o que é mais interessante, foram pela primeira vez propostos a (se) pensar.
Também, abri margem para que eles emitissem opinião sobre a pertinência e importância de trazer aquele tema para a escola e também houve respostas positivas.
Por fim, deixo registrado um diálogo que me chamou a atenção. Um aluno me perguntou algo como se testasse os limites da minha tolerância, como se me aplicasse um xeque-mate contra a minha coerência: “E se o seu filho fosse gay?” Respondi tranquilamente que aquilo não faria diferença nenhuma para mim e tudo seria normal. O aluno rapidamente retrucou: “Mentira!”. A pergunta e a tréplica duvidosas desse aluno me fizeram pensar o quão limitado é o universo social de muitos deles: eles simplesmente não conseguem conceber uma sociabilidade normal com homossexuais. O motivo é óbvio: eles nunca o viram, não sabem o que é isso. Que bom que eles viram o filme."